Era noite, Jaqueline resolveu fazer uma chamada de vídeo no computador com a amiga Bárbara para afastar os pensamentos que a assombravam. Quando estava sozinha, aquele sobrado parecia muito maior do que realmente era e cada barulho lá fora a fazia dar um pulo. Vinha tentando ficar sóbria nos últimos dias, mas a tensão em que se encontrava por causa das mensagens tornava tudo mais difícil. Pelo menos agora conseguia rir um pouco e distrair a mente enquanto conversava com Bárbara.
– Ele me ofereceu uma grana alta, acredita?
– E você não aceitou?
– Claro que não, ele pode pagar pra ver meus vídeos no OnlyFans se quiser, mas não faço esse tipo de coisa.
– Pagando não, né amiga, mas de graça já fez com a cidade toda! – Bárbara caiu na risada enquanto Jaqueline protestava.
– Eu estou mudando, dessa vez é sério, chega de Jackie Tequila, agora vou me tornar uma moça séria. Já não bebo há… três dias.
– Estou com você – respondeu a outra dando uma piscadela – vou passar uns dias na lancha do Seu Moacir, ops, Big-Moe (ele fica muito irado quando chamam ele de Seu Moacir) e quando voltar vou parar de beber também! Mas… a gente vai continuar mostrando a raba na internet por dinheiro, né?
– É claro! Vamos gravar outro vídeo juntas antes de você ir. O de Halloween está bombando.
– Eu topo! Agora… mudando um pouco de assunto… e o doido das mensagens, parou de te encher o saco?
Jaqueline deu um suspiro profundo, seu semblante mudou completamente à memória das mensagens.
– Quem me dera, hoje mesmo recebi um direct. Já bloqueei ele duas vezes, mas ele cria outras contas. Olha só o que ele me mandou mais cedo, você não vai acreditar:
“Estou atrás das putas como você e não deixarei de estripá-las até que eu esteja farto. Meu trabalho será grandioso. Eu nem te darei tempo para gritar.”
– Minha nossa – exclamou Bárbara – dessa vez ele pegou pesado!
– Eu estou com medo, Barbie, já até pensei em excluir minha conta do OnlyFans, mas ele também me mandou mensagens no e-mail pessoal, nem sei como conseguiu o endereço e…
– O que foi?
– Ouvi meu celular vibrando, deixei ele lá no quarto, vou buscar e já volto.
Jackie se levantou e subiu os dois lances de escada que levavam ao seu quarto. A câmera do computador exibia para a amiga uma bela sala, com decoração moderna e requintada. Ao fundo se via o corredor que dava para a cozinha, passando pelas portas da despensa e do banheiro. Bárbara observava o ambiente, que servira de palco para tantos vídeos das duas, e pensava se teria sido uma boa ideia deixar a amiga morando naquele sobrado sozinha.
Então, Bárbara viu algo que fez cada pelo de seu corpo arrepiar: Uma sombra se aproximava lentamente pelo corredor, vindo em direção à sala. A moça levou a mão à boca instintivamente e apertou os olhos para entender o que era aquilo. Mais próximo, ela conseguiu distinguir um homem baixo, usando um casaco escuro e um estranho chapéu alto. Bárbara gritou o mais alto que podia, na esperança de alertar a amiga, mas logo notou que a sombra ficara imóvel, a chamada havia travado.
“Ela precisa de mim, ele vai matá-la” – pensou desesperada, então pegou as chaves do carro e saiu com pressa.
***
No quarto, Jaqueline pegou o celular em cima da cama e viu uma nova mensagem: “De Jack para Jackie” com uma foto anexa. Ela clicou no desenho de seta para baixar a foto, mas mudou rapidamente de aplicativo, como se estivesse tentando fugir da barra verde que se enchia. “Não vou ver isso agora, ele está tentando me apavorar.” Deslisou a tela do Instagram por alguns instantes, olhando para várias imagens sem realmente prestar atenção em nenhuma, até que a rolagem parou. A internet não estava mais funcionando.
“Não, por favor, hoje não.”
Enfiou o celular no bolso e desceu novamente as escadas, já preocupada com a amiga que a estava esperando. A tela do computador estava ligada, mas a chamada havia caído.
Procurou o roteador, forçando a memória para se lembrar onde ele ficava. “Na despensa, é isso. Me admira que a internet funcione nessa casa com o roteador enfiado lá.” Se apressou até o corredor e encontrou a porta da despensa entreaberta. Atravessou o braço pela abertura, tateando na parede em busca do interruptor, mas a luz não acendeu. Após uma bufada de indignação, ligou a lanterna do celular e entrou na despensa escura, indo até a parede de trás onde ficava o roteador. Nenhuma luzinha piscando. Passou os dedos na parte de trás do aparelho, buscando o botão de ligar, mas logo notou algo faltando.
– Onde está o cabo da tomada? Isso não faz sentido…
Enquanto agitava o celular para focar a lanterna, sua mão sem querer fazia os aplicativos abertos transitarem na pequena tela, até que apareceu diante de si a foto que Jack havia lhe mandado. Jaqueline arregalou os olhos quando viu que a foto era dela mesma, de costas, sentada em seu computador durante a chamada de vídeo com Bárbara.
“Ele está aqui!”
A moça saiu correndo em pânico, mas mal atravessou a porta da despensa e dois braços passaram diante de seu rosto, vindo de trás. O cabo retirado do roteador apertou seu pescoço e ela sentiu um misto de dor e desespero enquanto o agressor tentava estrangulá-la. Mas Jackie não se entregou, apoiou os pés na parede do corredor e empurrou com todo o peso do seu corpo para trás, fazendo o homem perder o equilíbrio e cair de costas, então correu de volta para dentro da despensa e fechou a porta. Sentiu dois chutes violentos, vindo do outro lado, mas conseguiu puxar uma das grandes prateleiras, que ficou atravessada na diagonal, bloqueando totalmente a porta. Agora só podia ouvir as pancadas e urros de ódio de Jack.
Escutou seu celular vibrando, apalpou os bolsos por instinto, mas sabia que ele não estava lá, o barulho vinha do corredor. Sem ele, não poderia pedir socorro e teria que ficar ali, presa até alguém aparecer. Não demorou a encontrar uma lanterna de emergência e se sentiu um pouco mais aliviada por não estar mais totalmente no escuro. Do outro lado, ouvia passos que iam e vinham, vez ou outra o homem forçava a maçaneta tentando abri-la, mas logo parava novamente.
Após um tempo, Jackie não fazia ideia de quanto, ouviu a voz de Bárbara chamando na porta da frente do sobrado.
***
– Jackie, você está bem? Por favor me responde – gritava Bárbara enquanto batia na porta, do lado de fora – se tiver mais alguém aí, fique sabendo que eu chamei a polícia e eles vão chegar a qualquer instante!
“Assim que eles pararem de rir e acreditarem na minha história sobre o Jack Estripador” pensou triste consigo mesma.
Sem resposta, olhou apreensiva pelas janelas. As luzes estavam acesas, mas não havia sinal de vida.
De repente ouviu a voz de Jaqueline, parecia abafada e distante, não conseguiu compreendê-la.
– Jackie, onde você está?
Foi a última coisa que Bárbara disse antes da sombra de Jack surgir sobre ela. Sentiu uma pancada forte na nuca e tudo ficou preto.
De dentro da despensa, Jaqueline ainda berrava tentando alertar a amiga.
***
Jackie ouviu algo pesado sendo arrastado pelo corredor em direção à cozinha. Só a ideia de que poderia ser sua amiga a fazia tremer. A moça gritou alguns palavrões para Jack através da porta, mas não teve nenhum tipo de resposta. O medo começava a se transformar em raiva.
Procurou ao redor por algo que pudesse usar para se defender. Encontrou em uma caixa de ferramentas um pequeno canivete, que guardou no bolso, e uma chave inglesa bem comprida.
Custou muito para mover a enorme prateleira de volta ao seu lugar, mas finalmente a porta estava livre. O medo do que poderia acontecer agora encheu Jackie de adrenalina. Ela segurou a pesada chave inglesa e saiu para o corredor. Foi então que se deparou com uma cena muito bizarra.
Jackie ouviu um chiado e um cheiro de comida invadiu o corredor. Havia sangue e o rastro seguia até a cozinha. Lá estava Jack, de costas, fritando algo no fogão. O corpo de Bárbara estava no chão, a barriga havia sido aberta e as vísceras estavam visíveis, tinha sangue por toda parte. Jaqueline tapou a boca para conter o vômito.
– É uma receita de família – o homem tinha uma voz esganiçada, porém calma – meu bisavô a trouxe da Inglaterra.
Jack tinha o rosto redondo e um bigode grosso e pontudo, seus olhos castanhos estavam encobertos pela sombra da aba do chapéu. Usava um avental de couro todo surrado e manchado de sangue. Ele colocou a frigideira sobre a mesa e apanhou uma enorme faca que também estava ensanguentada.
– Podemos chamar hoje em dia de receita ecológica, pois eu faço uma limpeza, matando algo de podre na sociedade (como vocês, prostitutas da Internet) e em troca faço um lanchinho com um pedaço do seu rim.
Por um momento, Jackie se desligou da realidade, parecia estar em um sonho distante, um pesadelo que logo iria acabar com ela acordando tranquilamente em sua cama. Aquilo não podia estar acontecendo de verdade.
Mas o instinto de sobrevivência se fez mais forte que o medo: quando Jack a atacou com a faca, a moça reagiu e saltou de lado, desviando do golpe. Ela brandiu a chave inglesa em resposta, mas também errou e, nesse momento, o homem deu uma segunda estocada de baixo pra cima que a acertou nas costelas, fazendo um corte profundo. Jaqueline se debruçou sobre a mesa, encurvada pela dor.
– Agora não vai demorar, minha cara. Vou cortar suas orelhas e mandar para a polícia, junto com um bilhete escrito com seu sangue. Você vai ficar bem famosa no final das contas.
Jaqueline sentiu algo quente perto de si, era a frigideira com o rim frito da amiga, que Jack havia acabado de tirar do fogo. Ela apertou a mão em volta do cabo da frigideira e golpeou com toda a força que lhe restava, atingindo em cheio o rosto de Jack. O homem caiu de joelhos gritando, com as mãos sobre a face queimada. A moça agiu rápido, puxou o canivete do bolso e cravou em seu pescoço. O sangue jorrou, atingindo a janela sobre a pia.
***
Era Halloween, alguns adolescentes passeavam pelas ruas fantasiados de todo tipo de criatura de filme de terror. Os poucos que notaram uma moça atônita, andando com a roupa toda ensanguentada e um canivete na mão, pensaram ser só mais alguém vindo de uma festa à fantasia depois de beber bastante.
Jaqueline foi encontrada pela polícia a 3 quarteirões de sua casa, em estado de choque, com uma ferida aberta na lateral do tórax e foi levada às pressas para o hospital. Só conseguiu falar com detalhes sobre o ocorrido dois dias depois.
Os corpos de Bárbara e Jack foram levados pela perícia. O misterioso homem não foi identificado e ninguém veio reclamar o corpo, acabou sendo cremado como indigente, junto com suas roupas e a faca que usou no crime.